Conselho de classe - a verdade

Esta é uma obra de ficção, mas não deixa de ser baseada em fatos reais.


Eu sabia que ia sobrar para mim quando a diretora me lançou aquele olhar de garoupa arrependida e perguntou se eu não podia arredondar a nota do Zezinho para cima. Só mais essa vez. Eu poderia argumentar que eu já arredondei tanto a nota do Zezinho para cima que daqui a pouco ela será candidata a uma cirurgia de redução de estômago, mas ao invés disso usei um golpe baixo - apelei para a única professora abaixo da de Inglês (eu, no caso) na cadeia alimentar do colégio:

"E em Arte? Ele não ficou de recuperação em Arte também?"

A colega imediatamente sentiu a puxada de tapete e retrucou:

"Mas o Zezinho não entregou nenhum trabalho esse ano e não veio na recuperação. Eu não posso simplesmente inventar uma nota para ele!"

Eu não me daria por vencida - era uma questão de honra.

"Como não pode? Claro que pode. Eu mesma inventei nota para uma meia dúzia de alunos nesse conselho no ano passado, não foi, diretora?”

Eu apelei, admito. Invocar favores prestados em conselhos de classe anteriores é perigosíssimo. Corre-se o risco de ressuscitar mágoas enterradas há anos em café frio e bolacha Maria. Mas a professora de Arte conseguiu apelar mais:

“A gente não pode reprovar o Zezinho dessa vez?”

Silêncio. No hay banda. A professorada se entreolha não acreditando que ela, logo ela, toda tímida e riponguinha, teria coragem de mencionar o imencionável. A diretora leva alguns segundos para processar o absurdo, toma um copo de água em um gole só e responde:

“Professora, como é que eu vou explicar para um pai que o filho passou em Matemática e mesmo assim vai repetir de ano?”

“Porque ele passou em Matemática, talvez...” Ela insistiu. O que o desespero não faz.

“ Mas o Zezinho teve um ano difícil, vocês sabem. Perdeu o voo para a Disney e o Ipad novo no mesmo dia. O menino ficou abalado. A gente precisa dar uma chance a ele...”

“Se ele reprovar em Arte nós podemos pelo menos alegar falta de talento. Não vou arredondar, Inglês que arredonde.”

Traidora. Quando eu achei que poderia contar com a solidariedade de outra professora-com-cuja-matéria-ninguém-se-importa, ela me passa uma rasteira dessas. Penso em tentar o terceiro representante dessa categoria, o professor de Educação Física, mas essa é a única matéria na qual Zezinho passou fora Matemática. Decido fazer drama.

“Mas pessoal, é por isso que ninguém respeita professor de Inglês. Vocês tem noção do que é ouvir quase diariamente ‘Inglês reprova?’ Isso abala a autoestima da gente.”

A colega traidora não se comove:

“Ué, com Arte é a mesma coisa.”

“MAS INGLÊS É IMPORTANTE DE VERDADE, PÔ!”

Digo e na mesma hora percebo que foi um pouco demais. Todos me olham como se eu fosse a pessoa mais sem coração do mundo enquanto a colega começa a tremer o beicinho e ameaçar choro. No momento em que ela começa a verter lágrimas percebo que perdi a batalha. Mais um ano e Inglês não reprovou ninguém. 

Comentários

  1. desculpa aê! dou aula de português e o que eu digo tem peso. jamais me pediram pra arrendondar nota.

    Se bem que sou aquela que levam muito em consideração. do tipo, se o Zezinho ficou até com a Juliana, então tem mesmo que ficar reprovado. encho aluno de trabalho em sala e em casa pra sentir menos dor na hora de dar um ou dois pontinhos.

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  2. Minha irma de 15 anos disse pra todo mundo la na casa da minha mae (ou seja, pra minha mae e 3 irmaos, sendo que um eh nada mais, nada menos do que professor de geografia na mesma escola q ela estuda) que ela tinha ficado de recuperação direto em 3 materias (fisica, quimica e matematica, pro meu desgosto, ne?) e que tinha que tentar salvar uma (biologia) para nao repetir de ano (nessa escola nao tem muito papo nao).
    Dai que ela jurou que tinha tirado 10 na prova que ia salva-la (de biologia).

    Sabe qual era a verdade?

    Ela ficou em oito, OITO materias! E a primeira coisa q eu perguntei, quando soube, foi "e existem mais do que oito?"

    Imagina o dramalhao nesse final de ano?

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