O julgamento final
(Baseado em
um conto de Somerset Maugham, The Judgment Seat)
O cenário se assemelha a uma repartição pública. Ao fundo, vê-se uma mesa na qual um homem digita sem parar em um computador velho. Vez ou outra ele dá tapas no monitor como que para fazê-lo funcionar melhor. Em sua mesa há também uma pilha de papéis, vários carimbos e um souvenir de Bariloche, daqueles com um pinguim dentro. A esquerda há um banco de madeira comprido no qual várias pessoas estão sentadas aguardando sua vez. Na ponta mais à direita estão duas mulheres e entre elas um homem. A mulher da esquerda aparenta ser mais jovem que o casal, mas os três têm uma expressão ao mesmo tempo cansada e apreensiva. Além disso, o homem e a mulher da direita estão molhados.
O cenário se assemelha a uma repartição pública. Ao fundo, vê-se uma mesa na qual um homem digita sem parar em um computador velho. Vez ou outra ele dá tapas no monitor como que para fazê-lo funcionar melhor. Em sua mesa há também uma pilha de papéis, vários carimbos e um souvenir de Bariloche, daqueles com um pinguim dentro. A esquerda há um banco de madeira comprido no qual várias pessoas estão sentadas aguardando sua vez. Na ponta mais à direita estão duas mulheres e entre elas um homem. A mulher da esquerda aparenta ser mais jovem que o casal, mas os três têm uma expressão ao mesmo tempo cansada e apreensiva. Além disso, o homem e a mulher da direita estão molhados.
Na ponta do
banco vê-se uma mesa maior, mas igualmente bagunçada. Atrás dela, um homem
magro e calvo fuma impacientemente. Sobre a mesma, além dos papéis e carimbos,
há uma plaquinha na qual se lê: "Deus". Diante da mesa está um
filósofo, este de barba grisalha, vestindo um blazer de veludo marrom com
cotoveleiras de couro.
Deus (para o
homem de barba): Então você não acredita
em mim? (irritado, para o homem na outra mesa) Ôôô Gabriel, tinha que mandar esse cara pra cá logo hoje que teve
naufrágio? (aponta para o banco) Olha
como é que está isso aqui! (volta para o homem de barba): Não acredita mesmo?
Filósofo: Não.
Deus (suspira
e olha para cima, desanimado): Sabe,
tipos como você sempre existiram, mas de uns tempos pra cá eles têm aparecido
TODO santo dia. Estou pensando em criar um departamento especializado.
(Entrega uma ficha para o filósofo) Faça
o favor de preencher esta ficha com seus motivos para não acreditar em mim e
depois de protocolar no quinto andar você volta, certo?
Filósofo
(pega a ficha e lê em voz alta):Marque o
código correto. Você não acredita em Deus porque:
01 Foi vítima de uma grande tragédia e acha que se Deus existisse você não teria passado por isso.
02 Odeia acordar cedo aos domingos e acha que o ateísmo é uma boa desculpa para não ir à missa.
03 Está indignado com a miséria e as guerras e acha que se Deus existisse não permitiria atrocidades como essas.
04 Decidiu ser ateu para posar de bad boy e faturar umas menininhas na escola católica.
05 Acha que religião é coisa de gente inculta, pobre e a atrasada que não tem mais o que fazer da vida a não ser rezar e assistir novela.
06 Outro. Explique.
Eu fico com 06. (Devolve a ficha para Deus sem preencher)
01 Foi vítima de uma grande tragédia e acha que se Deus existisse você não teria passado por isso.
02 Odeia acordar cedo aos domingos e acha que o ateísmo é uma boa desculpa para não ir à missa.
03 Está indignado com a miséria e as guerras e acha que se Deus existisse não permitiria atrocidades como essas.
04 Decidiu ser ateu para posar de bad boy e faturar umas menininhas na escola católica.
05 Acha que religião é coisa de gente inculta, pobre e a atrasada que não tem mais o que fazer da vida a não ser rezar e assistir novela.
06 Outro. Explique.
Eu fico com 06. (Devolve a ficha para Deus sem preencher)
Deus
(irritado): Cidadão, um navio naufragou e
matou dúzias de pessoas. Tá todo mundo ali, ó (aponta para o banco) aguardando atendimento. Desse jeito eu
não consigo fazer o meu trabalho e, acredite: não tem ninguém que possa fazer
por mim.
Filósofo: Você nega a existência do Mal?
Deus
(impaciente): Não, não nego.
Filósofo: Pois é. O Mal existe e você não pode fazer
nada para evitá-lo. Portanto, não é (faz aspas com os dedos) "Todo poderoso".
Deus (acende
um cigarro): Lá vem...
Filósofo: MAS... Se você PODE evitá-lo e não o faz,
você não é infinitamente bom.
Deus bate a
cabeça na mesa.
Filósofo
(triunfante): Eu me recuso a acreditar em
um deus que não é (aspas com as mãos) "Todo Poderoso" nem
infinitamente bom.
Com o cigarro
na boca Deus preenche rapidamente a ficha recusada pelo filósofo.
Deus: Você acha que foi o primeiro a se achar
espertão e chegar aqui com estes argumentos? Devia te mandar pro inferno por
falta de originalidade, mas ok. Motivos
aceitos. Passa lá com o Gabriel (devolve a ficha) que ele carimba e já te manda
pro limbo. Tem uma van saindo daqui a 15 minutos. Próximo!
O filósofo
pega a ficha contrariado e senta-se em um banco próximo enquanto Gabriel atende
outra pessoa. A mulher e o casal molhado se aproximam da mesa de Deus.
Deus: Os três de uma vez? Ótimo, agiliza o
atendimento. (Deus observa a poça d'água que se forma sob John e Mary) Gabriel, pega um paninho pra secar essa
coisa, por favor. (Olha para John e Mary) Vocês estavam no naufrágio, eu suponho...
John: Sim, Senhor.
Deus (para
Ruth): E você, dona sequinha?
Ruth: Eu sucumbi de desgosto ao saber da morte do
meu amado.
Deus: Vocês eram casados, então...
Mary(dando um
passo a frente): Não Senhor, ele era casado
COMIGO.
Deus (dando
um sorrisinho sacana): Aaaahn, garanhão.
Será que agora a coisa vai ficar animada por aqui?
John
(ofendido): Senhor, por favor... Eu fui
um marido fiel a minha vida toda...
Ruth
(envergonhada): Nos apaixonamos, é
verdade...
John: Como Romeu e Julieta, Tristão e Isolda,
Homero e Penélope...
Deus
(impaciente): Tá, tá, corta. Então vocês
dois nunca...
Ruth: Não, não, claro que não! Sou uma mulher
decente e temente a De... ao Senhor! Eu jamais me envolveria numa relação
pecaminosa com um homem casado. Ao contrário - escolhi dedicar minha vida aos
outros (com uma ponta de orgulho) Eu
cuidava de órfãos! Esqueci de mim, abdiquei de minha juventude e minha
felicidade pelos pobres.
Deus
(bocejando): E você, John...
John: Eu fui um bom marido, Senhor. Jamais
abandonaria minha esposa ainda que isso custasse minha alegria. Eu também abri
mão da minha felicidade em respeito aos valores morais.
Deus apóia os rosto na mão e cotovelo sobre a mesa. Está quase dormindo. Aponta para Mary.
Deus: E você não tinha idéia dessa história, imagino...
Deus apóia os rosto na mão e cotovelo sobre a mesa. Está quase dormindo. Aponta para Mary.
Deus: E você não tinha idéia dessa história, imagino...
Mary
(orgulhosa): Eu sabia de tudo, é claro.
Mas aguentei calada até o final pois sou uma mulher cristã e o que De... o que
o Senhor uniu, homem ou mulher nenhuma pode separar. Suportei a dor de saber
que me marido era apaixonado por outra mulher porque sei que era isso que o
Senhor esperava de mim...
Deus: Quer dizer que vocês três levaram uma vida
de merda e estão descaradamente botando a culpa em mim? Tem graça!
John: Mas senhor... Nós estávamos apenas seguindo seus
ensinamentos. Eu fui um homem bom... Eu poderia ter sobrevivido ao naufrágio se
não tivesse tentado salvar minha esposa. No entanto...
Deus: No entanto... Imagine só que maravilha seria
sua vida se ela tivesse morrido e você não. Você estaria livre dessa chata
(aponta para Mary) e poderia se casar e
ser feliz para sempre com essa... outra chata (aponta para Ruth).
Mary
(indignada): Mas era dever dele como
marido fazer de tudo para me salvar!Ainda mais tendo me feito sofrer como ele
fez!
Ruth: Eu concordo com ela. Isso só prova que ele é
o homem generoso e abnegado pelo qual eu me apaixonei.
Deus (rindo):
Tá ouvindo, Gabriel? Quando esposa e
amante concordam, é porque eu não posso fazer mais nada. (acende um
cigarro)
John: Nós só estávamos sendo bons, senhor.
Deus
(irritado): Bons pra quem, colega? Pra
vocês mesmos é que não foi. (suspira) Olha, é um saco, isso. Vocês acham o que?
Que foi fácil colocar o pessoal para escrever aquele monte de coisas? Foi um
trabalho do cão! Séculos, milênios, pra quê? Pra nêgo ler de qualquer jeito e
ainda interpretar como bem entende. Não sei por que galera acha que eu me
preocupo tanto com essas coisas de sexo e tals. Tivessem prestado atenção iam
ver que até simpatizo com uma certa... Irregularidade no assunto. Bando de
gente burra! Se eu soubesse que ia ser assim, tinha prestado concurso pro Banco
do Brasil.
O último comentário de Deus gera grande comoção entre os três, que começam a discutir entre si e com o Todo-Poderoso. Este, cada vez mais irritado, berra:
Deus: Chega! Acabou! Já deu! Chega aqui, filósofo!
O filósofo se aproxima. Deus aperta um botão vermelho sobre sua mesa. Imediatamente um alçapão se abre no chão e os três caem.
Deus: E aí? Sou ou não sou todo poderoso? Um botãzinho e puf. Livre o mundo desses infelizes. Fiz um favor à humanidade e isso prova que também sou imensamente bom. Gabriel, encerra por hoje que eu tô de saco cheio. Vamos tomar uma cerveja, filósofo?
Deus pega o casaco e sai de cena, seguido pelo filósofo. As luzes se apagam. Fim.
O último comentário de Deus gera grande comoção entre os três, que começam a discutir entre si e com o Todo-Poderoso. Este, cada vez mais irritado, berra:
Deus: Chega! Acabou! Já deu! Chega aqui, filósofo!
O filósofo se aproxima. Deus aperta um botão vermelho sobre sua mesa. Imediatamente um alçapão se abre no chão e os três caem.
Deus: E aí? Sou ou não sou todo poderoso? Um botãzinho e puf. Livre o mundo desses infelizes. Fiz um favor à humanidade e isso prova que também sou imensamente bom. Gabriel, encerra por hoje que eu tô de saco cheio. Vamos tomar uma cerveja, filósofo?
Deus pega o casaco e sai de cena, seguido pelo filósofo. As luzes se apagam. Fim.
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