O Mundo Pós-Aniversário

O ano é 1997. Irina é uma ilustradora de livros infantis de 42 anos que há 10 tem um relacionamento com Lawrence, um acadêmico especialista em política internacional. Eles são americanos, mas vivem juntos em Londres. 

Irina tem um casal de amigos, Jude e Ramsay, com quem ela e Lawrence se encontram de vez em quando mais por conveniência profissional, uma vez que Jude é editora de Irina. Embora não sejam próximos, os casais mantém essa tradição de se reunir no aniversário de Ramsay para um jantar. Esse ritual se repete durante alguns anos, até que Jude e Ramsay se separam. Diante desse novo cenário e com Lawrence em Sarajevo a trabalho Irina aceita, a contragosto e depois de muita insistência do companheiro, sair para jantar sozinha com Ramsay no aniversário dele daquele ano. E neste dia, depois do jantar, ela aceita ir até a casa dele. E Irina e Ramsay quase se beijam. E se apaixonam.

A partir daí a história de Irina se divide em duas linhas do tempo: uma na qual ela decide procurar Ramsay de novo e viver essa paixão, eventualmente abandonando Lawrence; e outra na qual ela escolhe a segurança da sua vida monótona com o acadêmico. O fato é que em nenhuma das linhas do tempo a vida de Irina depois do aniversário de Ramsay será a mesma. 

Lawrence e Ramsay são arquétipos masculinos. Lawrence é o homem certinho, quadrado, que ama sua companheira mas depois de dez anos já não demonstra isso suficientemente. Lawrence representa segurança, aquele relacionamento que não parece ruim porque afinal de contas, ele nunca brigam. Ramsay é bonito, boêmio, passional. Tem uma vida emocionante (é um jogador de snooker muito famoso na Inglaterra) e seu relacionamento com Irina é permeado por brigas terríveis seguidas de declarações de amor e grandes gestos. Toda pessoa que já se relacionou com homens heterossexuais já cruzou com um Lawrence ou com um Ramsay. Talvez com os dois. 

Há uma série de motivos pelos quais eu me identifiquei com esse livro de Lionel Schriver (que é uma mulher). Eu tenho 42 anos. Eu vivi durante oito anos com um Lawrence. Vi amigas se relacionando com Ramsays. Eu me vi em incontáveis situações descritas no livro, tanto com Lawrence quanto com Ramsay. Eu talvez tivesse ficado para sempre com meu Lawrence se ele não tivesse decidido se separar. Lionel narra tudo com maestria, com uma prosa deliciosa que faz com que mudemos nosso ponto de vista a respeito de cada um destes homens de acordo com a linha do tempo que estamos lendo naquele momento. Odiamos Ramsay na linha do tempo dele. Odiamos Lawrence na outra. Queremos Irina livre, mas ela não quer. Irina quer viver um amor a qualquer custo e vai lutar por isso, embora eu não consiga enxergar amor na maneira como Lawrence e Ramsay olham para ela. 

Ao ser questionada se a busca incessante de Irina pelo amor de um homem não seria anti-feminista, Lionel respondeu que não. Que acredita que nós já demos a volta nessa questão e que Irina é livre para tomar suas decisões. Eu não concordo. Eu acho que Irina ainda é fruto de uma sociedade que ensina as mulheres a se validarem através do olhar masculino e que as decisões que ela toma não são dela, mas do mundo em que ela cresceu. Em que nós crescemos, porque o livro começa em 1997 mas em 2021 ainda existem um monte de Irinas por aí. As decisões que ela toma são fruto desse desejo de ser amada de qualquer maneira que só existe porque fomos ensinadas desde muito cedo que vida só é completa quando temos um homem ao nosso lado. 

Por outro lado, enquanto eu digito isso, lembro do quanto eu me irritava vendo Lawrence tratar Irina como uma criança, como um serzinho frágil e incapaz. Como uma mulher fofa meio burrinha que era "só" uma ilustradora de livros infantis incapaz de discutir política internacional com seus colegas da universidade. E eu não quero fazer isso. Porque eu me identifico com Irina e com seu desejo de ser amada. Mas eu tive a sorte de ter sido abandonada pelo meu Lawrence a tempo de me reconstruir, de me enxergar completa. Ela não. 



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