Um texto que foi mudando de cara ao longo de oito meses

Novembro em uma cidade turística no sul do Rio de Janeiro. Cheia, apesar da chuva insistente que enlameava tudo e deixava o lugar com um ar cansado, melancólico. "Vamos sair assim mesmo". Eu aceitei, animada. Aquele feriado de finados era mais que bem vindo pra mim, professora em fim de semestre lidando com um quinto ano indócil e ansioso pelas férias. 

"A gente sai lá pelas 7, dá uma volta pelo centro e depois senta em algum lugar pra ouvir uma música, tomar um negocinho". E assim o faríamos. No fim da tarde, mensagem no telefone dela. Ela dá um sorrisinho, digita alguma coisa, olha pra mim: "Tudo bem se o Beto for?"

O Beto. Eu conhecia o Beto de fotos em rede social e dos relatos dela. Relatos estes, inclusive, que só me faziam ter vontade de gritar "amiga, foge, mas foge logo". Só que, vejam bem: se ela mesma, ao me dizer em voz alta o quanto aquele homem era uma versão esquerdomacho levemente (?) manipulador de um Bukowski dos trópicos ainda não tinha se dado conta do problema, não cabia a mim abrir os olhos dela. Não agora, enquanto ela ainda estava no auge do encantamento por aquele homem bonito, que fazia poesia ruim e era capaz de chupar uma buceta por 40 minutos seguidos. Tudo bem se o Beto for, claro. 

O Beto apareceu no nosso portão vestindo uma camisa estampada, calça clara e chapéu Panamá (original, como ela fez questão de frisar em algum momento da noite, eu jamais entenderei por quê). Era realmente um tipo bonito, baixinho, atlético, 40 e poucos anos. O tipo que, paulistano fosse, teria um perfil no Tinder com uma frase do Belchior e uma foto maquiado num bloco de carnaval na Santa Cecília.  E só sairia com mulheres -30 daquelas beeeeem padrão. Aos 42 anos, reconheço um personagem fuleiro desses a quilometros de distância. Ele me cumprimentou desinteressadamente e entramos no carro da minha amiga, ele no banco da frente. Automaticamente ele começou a contar alguma coisa da academia de crossfit que fez meu cérebro desligar da conversa até ele falar de música e soltar um “Não, porque o Pabllo Vittar…” que me fez imediatamente retrucar “A Pabllo Vittar.” Começamos com o pé direito. Em seguida ele disse com muita autoridade alguma bobagem sobre música paraense que eu prontamente corrigi e pronto: estava dado o tom da noite.

A volta no centro me rendeu dois Jorge Amados pois se tem uma coisa que eu não resisto são drinks com nomes engraçados vendidos em barraquinhas coloridas. No bar, as coisas não melhoraram muito. Nos sentamos numa mesa apertada, minha amiga no meio, música alta, um gin tônica apenas ok. Beto e eu não trocamos uma palavra e pensem no quanto uma sagitariana alcoolizada precisa estar desconfortável para não querer conversar com alguém. No segundo gin tônica um cara na mesa de trás me chamou:

"Desculpa incomodar, mas eu conheço essa sua tatuagem. Vi sua foto no Tinder. Ela é muito legal." 

Ele se referia à minha tatuagem da onça na parte de trás do braço direito, que é realmente única e realmente está disponível, belíssima e em cores, no meu perfil do Tinder. Conferi o moço. Não era feio, e apesar do comentário inusitado, tinha sido educado. Eu poderia ter iniciado uma conversa divertida com um "e você deu like?", mas não consegui. Dei um sorrisinho constrangido e me calei. Fazia tempo que eu não sentia tanto que NÃO queria estar em um lugar. 

A noite terminou com mais um Jorge Amado na barraquinha da rua e sem maiores intercorrências graças ao inesperado bom senso do Beto de não falar comigo. Mas eu obviamente fiquei remoendo tudo porque é pra isso que eu pago terapia.

Vejam vocês que loucura: eu estava me sentindo culpada. Eu deveria ter sido mais simpática com "o cara que a minha amiga estava pegando" mesmo sendo absolutamente claro pra mim que ele estava a anos-luz do que eu consideraria uma boa companhia pra qualquer um. Quem sou eu pra decidir isso? Como eu posso ser tão crítica com alguém que eu tinha acabado de conhecer? 

Ele também fez zero esforço para ser simpático comigo. Mas, para a minha amiga, aquela era "o jeitão dele". Já eu, segundo ela, poderia ter tentado um pouco mais. Porque é isso que se espera das mulheres - que elas se esforcem um pouco mais. Já ele, um sujeito completamente mediano, aliás, estou sendo boazinha, um sujeito bem cagado na vida cuja sorte é ser branco, bonito e privilegiado socialmente, pode ter "o jeitão dele" (sim, eu detesto esse cara, acho que vocês já perceberam). 

Mas isso aconteceu em Novembro de 2021 e este texto estava no rascunho desde então. Resolvi terminá-lo agora porque de lá pra cá minha amiga caiu em si e se afastou do Bukowski da Santa Cecília e a terapia tem me ajudado a ficar mais em paz com minha intuição e minhas vontades. A me culpar menos por não corresponder a certas expectativas. A ser mais gentil comigo. 

Pensar que eu comecei esse texto pra falar mal de macho. Terapia é gostoso demais, amigos, recomendo. 

Comentários


  1. graças a deus q sua amiga pulou fora. achei que seria mais uma amiga sua numa roubada.

    se exige esforço pra eu gostar, é que boa coisa não é - esse é o meu lema. Se eu estiver errada as circunstâncias ajudam a dar um jeito. Esforço pra gostar, pra aturar jamais. viva a terapia.

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